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O Pão Nosso de cada dia
TIPO DE PROJETO
Exposição - Performance
DATA
30 de maio 2025
LOCAL
Teatro Unimed, São Paulo
ARTISTA PARTICIPANTE
Anna Bella Geiger
REALIZAÇÃO
ATTO.Arte, Instituto Comadre e Mendes Wood DM
Em 2025, completam-se 47 anos desde que Anna Bella Geiger realizou a obra O Pão Nosso de cada dia (1978). Composta por cinco cartões-postais acondicionados em um saco de pão de padaria, a obra tem origem em uma performance íntima, feita em casa e fotografada pelo fotógrafo Januário Garcia.
Trata-se de um dos trabalhos mais emblemáticos da artista, carregado de simbolismos e múltiplas interpretações que atravessam o tempo, permanecendo relevante até hoje: do contexto da ditadura militar brasileira à atualidade, com ecos e repetições marcantes. A obra toca, de forma contundente, em temas como religião, cotidiano, esvaziamento, fome e território.
O título da obra traz um trecho do Pai Nosso, oração rotineira, cristã, majoritariamente católica, que carrega o tom de súplica pelo básico. Ao mesmo tempo que remete ao projeto colonial, a obra também reforça a ambiguidade da religião no período da ditadura: ora cúmplice, por meio dos setores conservadores da Igreja Católica que apoiaram o regime e seus valores “tradicionais”, ora força de resistência, através da Teologia da Libertação e das denúncias contra abusos e injustiças sociais.
Hoje, quase meio século depois, vivemos uma repetição dessas tensões: um Brasil dominado por um movimento político conservador que, por diversas vezes, se ancora na religião e em valores morais supostamente universais. Ainda que não estejamos sob uma ditadura e censura, temos um Congresso amplamente formado por parlamentares que usam do discurso religioso para definir políticas públicas e leis, quebrando assim a concepção constitucional laica de Estado. Essas decisões incidem diretamente sobre a estrutura do dia a dia da população, afetando corpos, direitos e liberdades.
Foi também em 1978 que ocorreu a Marcha da Carestia — um movimento liderado por mulheres das periferias de São Paulo contra o aumento do custo de vida. A mobilização reuniu mais de 20 mil pessoas e pressionou o governo a adotar, de forma pontual, medidas de controle de preços e reajustes salariais. Mesmo com respostas limitadas e repressivas das autoridades, a marcha se consolidou como um marco da resistência popular durante a ditadura1.
Quase duas décadas depois, em 1995, durante a IV Conferência Mundial sobre as Mulheres, a obra de Anna Bella Geiger foi apresentada pela antropóloga Ruth Cardoso em uma de suas palestras, reforçando a histórica relação entre mulheres, fome e políticas de sobrevivência. Na ocasião, Ruth afirmou em seu discurso: “Por isso, esta Conferência, ao dar visibilidade à feminização da pobreza, torna inequívoca a relação entre a autonomia das mulheres e a melhoria da qualidade de vida. E é por isso que o combate à pobreza e a promoção do desenvolvimento se inserem, inexoravelmente, na luta das mulheres”2.
Não surpreendentemente, em 2025 voltamos a viver uma crise inflacionária alimentar: mais da metade dos brasileiros afirma ter reduzido a quantidade de alimentos que costuma comprar; entre os mais pobres, esse número chega a quase 70%. Um quarto da população relata ter menos comida do que o suficiente em casa3.
O pão de forma mordido, com os vazios moldando os contornos do nosso país e continente, representa o esvaziamento literal e simbólico da fome, do básico, do educacional. A escolha da fatia de pão foi intencional, pensada pelo seu formato reto e regular, que permitiu esculpir de maneira mais clara os mapas do Brasil e da América Latina. Mas, para além dessa função prática, é interessante pensar que o pão industrializado, assado em uma forma, carrega em si camadas simbólicas relevantes: trata-se de um alimento feito à base de trigo, um ingrediente “colonizador”, trazido do Mediterrâneo e do Oriente Médio pelos europeus, e associado historicamente à dieta branca e cristã. A própria oração que intitula a obra enaltece o pão como símbolo do corpo de Cristo. Hoje, esse alimento é apenas um entre tantos produtos baratos e de baixo valor nutricional que ocupam a dieta da população. Com a mera finalidade de tapar buracos, não alimentam de fato, apenas preenchem o estômago, enganando os vazios da fome sem suprir as necessidades do corpo.
A relação entre Brasil e América Latina está presente nos mapas moldados pelo gesto de comer, gesto que, para além da fome, carrega o peso de um tempo em que grande parte do continente estava sob ditaduras militares. Eram tempos de autoritarismo disseminado na região, que, segundo Anna Bella, provocava uma sensação de “vazio no seu próprio corpo”. Essa relação se imprime não apenas na imagem, mas também no suporte e na atuação relacional da obra: cartões-postais que foram enviados com mensagens de Natal a amigos em diferentes regiões do Brasil e países das três Américas. Cada cartão carregava um gesto estético e político, funcionando como uma correspondência afetiva e, principalmente, crítica — uma maneira de desafiar e driblar a censura. Um múltiplo que circulava entre pares.
Esta nova edição de O Pão Nosso de cada dia, apresentada em 2025, também se configura como um múltiplo: a mesma ação, a mesma imagem, agora com Anna Bella aos 92 anos, acompanhada por uma vídeo-performance inédita. A performance que originou a obra foi apresentada publicamente apenas uma vez, em 1980, na 39ª Bienal de Veneza — e quase meio século depois, volta a ser partilhada com o público. Repetir o gesto, agora com os sinais do tempo inscritos no corpo da artista, é mais do que reafirmar a potência simbólica da obra; é tornar visível que as ausências de ontem ainda habitam o presente. Como um rastro a ser seguido, o gesto persiste. Entre pão, prece e política, continuamos mastigando os vazios de um país que ainda não garante o básico para todos.
Maíra Marques e Gabriela Davies
Maio 2025
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1 PAMPLONA, Pablo. Como a mobilização das mulheres contra a carestia desmoralizou os militares. Jacobina, 12 set. 2021. Disponível em:
https://jacobin.com.br/2021/09/como-a-mobilizacao-das-mulheres-contra-a-carestia-desmoralizou-os militares/. Acesso em: 14 maio 2025.
2 CARDOSO, Ruth. Discurso na 4ª Conferência Mundial sobre as Mulheres. Fundação FHC, 7 mar. 2017. Disponível em: https://medium.com/funda%C3%A7%C3%A3o-fhc/discurso-de-ruth-cardoso-na-4%C2%AA-confer%C 3%AAncia-mundial-sobre-a-mulher-a3b557308a28. Acesso em: 14 maio 2025.
3 DATAFOLHA. Nos últimos meses, 58% dos brasileiros reduziram a quantidade de alimentos que costumam comprar. Folha de S.Paulo, 15 abr. 2025. Disponível em:
https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniao-e-sociedade/2025/04/nos-ultimos-meses-58-dos-brasileiros reduziram-a-quantidade-de-alimentos-que-costumam-comprar.shtml. Acesso em: 14 maio 2025.
Créditos:
assistente
Jéssica Guia
produção
Protótipo Filme
direção de palco
Richard Luiz
coordenação de produção
Rodrigo de Arcângelo
direção fotografia filmagem
Fabrício Brito
assistente de câmera
Patrick Santos
Cintia Garcia
montagem
Marcio Oliveira
design gráfico
Elio Buoso
atriz coadjuvante
Gabriela Davies
maquiador
João Signori
camareira
Juliana de Oliveira
operador de som
Luis Fernando Alves
operador de luz
Luiz Fernando Pereira
agradecimentos
Equipe Teatro Unimed













