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CARNEECORPO - você não está entendendo quase nada do que eu digo : Maria Antonia
TIPO DE PROJETO
Exposição
DATA
21 de setembro - 02 de novembro 2024
LOCAL
Largo das Artes - Rio de Janeiro, RJ
ARTISTA PARTICIPANTE
Maria Antonia
ONG APOIADA
Projeto ComVivência
FOTOGRAFIAS POR
Lucas Vaz - RONDA
CarneeCorpo
Há 10 anos, Maria Antonia explora a carne e o corpo, tendo principalmente o corpo da mulher como figura central. Em sua pesquisa, o corpo se torna a formalização da carne — um invólucro que nos define socialmente e nos posiciona no mundo, refletindo tanto nossas experiências íntimas quanto os territórios coletivos que habitamos. Suas obras evocam a carne que pulsa e sente, explorando a dimensão sexual e emocional do corpo, que carrega em si tanto o prazer quanto a dor, revelando camadas sensoriais e afetivas profundas.
Apesar dos avanços em algumas questões ao longo da última década no qual essa série da artista é desenvolvida, muitos temas ainda permanecem relevantes e necessários de serem discutidos. Mas engana-se quem pensa que o trabalho da Maria é apenas sobre as lutas associadas ao corpo feminino; ele navega por conceitos mais amplos da complexidade e o sentir humano: a existência e as relações. Suas obras revelam as tramas sensíveis que surgem no encontro entre o indivíduo e o mundo, entre o corpo e suas vivências, confrontando o sentir e os desafios de estar no mundo.
Fazer das tripas coração
O trabalho de Maria Antonia é marcado por uma visualidade visceral que evoca a materialidade da carne — a massa de órgãos, as texturas cruas e os tons intensos — que transmitem uma experiência sensorial e quase tátil. Como se houvesse o ato de embolar e amarrar as tripas a partir de um gesto de capturar a vitalidade e a tensão da carne. Essa articulação remete ao ato físico de criar, onde o feitio com as mãos, os nós e amarras das carnes de tecido que ela utiliza evocam uma experiência tangível de encontro com o corpo ou até mesmo o ato de pintar como uma gesticulação corpórea. Em meio a essa visceralidade, há um diálogo constante com o sentir; o que começa como uma sensação ou intuição — um dos grandes poderes atribuídos à mulher — é validado e corporificado ao se transformar no órgão que chancela o amor – coração – revelando uma profunda conexão entre o impulso intuitivo e a fisicalidade da existência.
O trabalho da Maria Antonia está nesse limiar entre o que se sente emocionalmente e fisicamente. O corte, a fissura, o gosto, o prazer, o ato sobre o corpo, o ato com o corpo, a entrega ou o receber.
Essa dualidade é exatamente o lugar pelo qual transita: o que é visceral, que é estético, que urge os sentimentos e sensações pulsantes, animalescas e primais. Por outro lado, tem a beleza, o desejo e o velado.
Unha e Carne
O processo artístico de Maria Antonia é profundamente enraizado em um diálogo contínuo com outros artistas, onde ela incorpora elementos e motivos de seus antecessores e contemporâneos como uma forma de homenagear suas ideias. Em suas obras, identificamos influências de Louise Bourgeois, Francis Bacon, Cecily Brown, Adriana Varejão, Rembrandt, entre tantos outros, de maneira que seu pensamento artístico se torna uma extensão de seus mestres. Não é apenas uma forma de honrá-los mas dialogar com demais artistas, incorporando, dividindo e compartilhando suas visões.
Essa apropriação é um despertar, algo que vivenciamos a partir das nossas admirações. Quando algo incita nosso interesse e fascínio, é porque ressoa com um aspecto já existente dentro de nós. Assim como na paixão, não nos apaixonamos pelo outro em si, mas pelo que ele aflora em nosso próprio ser. É como se, ao se relacionar com a história da arte, Maria Antonia fundisse sua identidade com a deles, criando uma unidade indivisível, onde parte de seu corpo e intenção são feitos de Bacon, Brown ou Bourgeois.
Sangrar até a última gota
O corpo e a carne refletem as dinâmicas de consumo voraz da nossa sociedade, onde tanto a carne humana quanto a animal são exploradas até o esgotamento. A carne servida à mesa torna-se um objeto de exploração desenfreada, desgastado e desprovido de sua integridade, sem que se considere sua finitude assim como o corpo. A obra de Maria Antonia traz à tona uma reflexão profunda sobre esse uso exacerbado — não apenas da imagem do corpo, mas também da carne animal — estabelecendo um paralelo com a ingestão de proteína animal na cultura contemporânea. As imagens de açougues, sangue e pedaços de carne sem forma, despedaçados, destacam como a carne, sem corpo, perde sua identidade, fragmentada em pedaços fáceis de ingerir.
A crítica à "carnificina" se expande para o aproveitamento voraz de nós mesmos e de nossos recursos, tanto físicos quanto emocionais. A exaustão decorrente de trabalhos intermináveis, os processos desgastantes de alta produtividade e a produção incessante de imagens — físicas e simbólicas — de nossos corpos e vida refletem uma sociedade que devora o tempo e esgota o ser. A pesquisa de Maria Antonia expõe essa conexão entre o corpo humano e o animal, revelando como ambos são explorados dentro de um sistema que os reduz à matéria extrativista consumível. Suas obras apresentam uma crítica contundente ao ciclo de exploração que esgota não apenas o corpo, mas também o espírito, apontando para uma desconexão com a materialidade da vida e o seu real valor.
A carne é fraca
Embora essa expressão seja frequentemente associada ao desejo sexual, ela também pode se aplicar a tudo o que nos impulsiona, mas é socioculturalmente negado. São grandes pulsões com as quais lutamos constantemente, enquanto, ao mesmo tempo, nos rendemos a elas — nossos vícios de estimação: o desejo pelo proibido, pelo corpo novo quando se tem um pacto de fidelidade, pela paixão destrutiva, pela comida deliciosa que deve ser evitada, pelas substâncias psicotrópicas que carregam consigo uma forte condenação, tanto externa quanto interna. Pelas repetições auto-censuradas e que continuam sendo veementemente repetidas.
Poderíamos, com ênfase, levantar nesse tópico o debate sobre a repressão sexual que as mulheres enfrentam socialmente e que, muitas vezes, se transformam em uma luta interna sobre a decência x desejo, e concomitantemente, ainda contrapor a violência sexual a que esses seus corpos censurados são submetidos. No entanto, a pintura de Maria Antonia aborda o sexual de maneira diferente: não é sobre a supressão do erótico, mas sobre o toque sexual, a liberdade do desejo e emancipação do prazer. Não há espaço para o pouco ou para o reprimido — sua obra trata de avalanche, de abundância, de quantidade, como o prazer da carne deve ser.
A pequena morte (la petite mort)
Maria Antonia encontra um enorme prazer na pintura; para ela, pintar é uma forma de experimentar a existência no mundo. Parir uma obra envolve um processo de prazer, produzida a partir de uma conexão mútua da tela com a artista em uma troca de entregas. De certa forma é uma troca apenas da artista com ela mesma, da forma mais profunda e sensorial que ela pode ter. De outro lado, é uma tentativa de troca com a imagem que ela vê se formar na tela, esmiuçando e testando os traços e técnicas de aplicação. Esse encontro em parte acontece apenas dentro dela, e de outra forma da tela enquanto corpo presente e participativo.
Toda conclusão de uma obra é como um orgasmo — o ápice após uma entrega total que não permite mais desenvolvimento. O tesão derivado da expressão criativa é muitas vezes comparado ao prazer sexual, inclusive pela similaridade de respostas fisiológicas e emocionais. Colocar energia em uma atividade que desperte um estado de fluxo, concentração e prazer pode resultar em uma sensação semelhante ao gozo. Para Maria, pintar é um ato libidinoso; a tinta é a carne, e a pintura, o corpo.
Envelhecer como carne de charque e virar presunto
Ao mesmo tempo que podemos separar carne e corpo através de analogias distintas, os dois frequentemente se entrelaçam.
O corpo da mulher, por exemplo, muitas vezes reduzido à carne a ser consumida, reflete essa relação complexa e indissociável. A carne evoca imediatamente imagens de sangue, decomposição, finitude — a morte. Essas dimensões estão presentes em nossos corpos, que inevitavelmente passam pelo processo de envelhecimento enquanto se vive. Esse corpo, em sua vulnerabilidade e impermanência, nos lembra constantemente da inevitabilidade do fim, algo que nos esforçamos inútilmente para ignorar. O corpo se transforma em carne: um amontoado de músculos, órgãos e matéria inanimada — tal como os pedaços embalados em plástico nos supermercados cuja origem cadavérica é facilmente esquecida. Essa realidade do crú nos confronta com a verdade que tentamos evitar: o fim. É o medo e a negação da morte que moldam nossa existência e nosso desejo de permanência. O trabalho de Maria Antonia constantemente convida o espectador a enfrentar essa negação, a encarar carcaças e reconhecer a finitude inscrita no corpo e na carne, aceitando que, mesmo em nossa busca por imortalidade, seja através da religião, descendentes, fama e até mesmo da perpetuação das obras de arte, somos essencialmente temporais – altamente perecíveis.
Gabriela Davies & Maíra Marques
Setembro 2024